sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

COMO AMAM OS HOMENS (por Cristiano Pimenta)



Não me parece possível abordar esse tema sem antes enfrentar uma difícil questão: o que é ser homem hoje? É ser machão? É ser heterossexual? Sabemos que há o metrossexual e também – seguindo tendências mais recentes – o lumbersexual. Dizem, aliás, que Brad Pitt, Ben Affleck, dentre outros, já aderiram ao estilo do “lenhador sexy”. Por outro lado, por que um homossexual não seria um homem? E o que dizer de certas mulheres que em tudo parecem ser “mais macho que muito homem”? Ora, essa confusão evidencia que nessas questões a vida contemporânea é atravessada por uma ruptura com os antigos padrões.

O homem com “H” maiúsculo
Tentemos fazer o contraste entre o passado e o presente. Antes, as referências pareciam mais claras e firmes. A teoria psicanalítica lacaniana mostrou como eram feitos os homens. Na década de cinquenta, Lacan elaborou uma fórmula chamada Metáfora Paterna para traduzir em termos formais a teoria do Complexo de Édipo de Freud. Para psicanálise, também quanto ao sexo masculino, é certo dizer que não se nasce, mas torna-se homem. Dito em termos simples, a Metáfora Paterna nos mostra como um menino torna-se um homem, a saber, pela interdição que a função paterna introduz nas relações mãe-criança. Trata-se da famosa interdição do incesto, mas que atinge não só a criança como também a mãe. Pelo lado da criança, a função paterna lhe impõe um Não te deitarás com tua mãe. E pelo lado da mãe um Não reintegrarás teu produto. O pai, portanto, salva a criança de ser devorada pela mãe e é isso que lhe permite tornar-se um homem. Restará apenas o passo seguinte dado pelo projeto de homem: eu quero ser igual ao papai. Eis que nasce um homem! Sim, pois, na medida em que sou igual ao papai me sinto no direito de ter uma mulher, ou seja, me é permitido que um objeto venha substituir a mãe. A coisa culmina na família, no interior da qual terei minha autoridade de pai, do homem da casa, etc.
Antes de apontarmos o declínio dessa maquininha de fabricar homens à imagem do pai, quero chamar a atenção para as características gerais desse antigo homem-pai. Ele era absolutamente seguro de si na relação amorosa com a mulher. Ele se sentia, ele se via, como sendo o possuidor daquilo que uma (a sua) mulher mais poderia desejar, a saber, sua própria masculinidade, à qual Lacan consagrou o termo falo. Ser homem aqui é ser o portador daquilo que satisfaz o desejo de uma mulher, daquilo que estabiliza, orienta e apazigua a aflição feminina. Nesse sentido, ser homem é anterior ao ser o provedor. Ser homem é, antes, a condição necessária para prover. Ser homem é estar no poder. De um modo geral, na história humana, o poder sempre foi coisa de macho, e o falo é a essência do macho.
E como ama esse homem simbolizado pelo pai severo, cuja vontade era expressa e atendida com um simples olhar enfurecido? Digamos que ele não foi talhado para amar, mas sim para ser amado. É que amar fragiliza, enfraquece, gera dependência para com o objeto amado. Amar é confessar sua falta (Miller). No contexto desse homem-pai-possuidor-do-falo, o amor concerne mais à mulher. Amar é coisa de mulher. Daí que, se esse Homem com maiúscula se enfraquece por amor ele pode ser depreciativamente chamado de “mulherzinha”. Compreende-se, por outro lado, que, dessa perspectiva, ser mulher é ter inveja do pênis (Penisneid), como formulou Freud. A inveja do pênis é o nome freudiano da falta feminina, falta que se apazigua na relação com aquele que é o detentor do objeto do desejo.

A liberação do desejo feminino
Mas um Homem assim terá existido realmente algum dia? Deixo de lado essa questão para dizer que, de todo modo, enquanto Ideal, referência simbólica e identificatória, ele existiu sim. Sua produção dependia da eficácia do pai, enquanto o interditor da relação mãe-criança. Todavia, o pai enfraqueceu. Por quê? Para responder tal questão é preciso observar que essa engrenagem da Metáfora Paterna só funciona se o desejo feminino estiver enganchado nesse Homem, ela foi montada para responder ao desejo feminino, ao qual se supõe poder dizer: afinal, o que mais uma mulher poderia desejar além de ter marido e filhos? Impossível não nos lembramos de que a psicanálise foi inventada por Freud justamente na tentativa de tratar das mulheres que não se encaixavam nesse padrão: as histéricas. As histéricas do final do século XIX já testemunhavam, ou melhor, já produziam, o fracasso desse Homem. O desejo histérico se caracteriza justamente por se remeter sempre a uma Outra coisa, ele é por definição insatisfeito, não se apazigua com o falo e nem com os objetos substitutos como o filho. As histéricas foram as primeiras a deixar esse Homem a ver navios. Seus pais, numa última tentativa desesperada de colocá-las na via correta, diga-se arranjar-lhes um marido, as levavam a Freud, como se dissessem: quem sabe essa tal psicanálise possa dar um jeito. Digo de passagem que Freud jamais se propôs simplesmente atender às demandas de adaptação dos pais. O projeto de Freud foi, antes, o de tentar explicar os mistérios que governam a vida amorosa das pessoas.
Eis, portanto, o motivo fundamental do declínio desse Homem-pai: a liberação do desejo feminino. Liberação em relação ao padrão “papai-mamãe”. Já de início, poderíamos dizer que nesse terreno o homem está sem bússola, pois o que antes era o Norte para ambos os sexos, o falo, já não cativa tanto, ou já não se encontra lá onde se espera encontrá-lo, tal como podemos ver no filme Jovem e bela. Depois de perder a virgindade para um rapaz que acabara de conhecer, num encontro frio e sem amor, a linda e jovem moça dá início ao exercício da prostituição. Ela se vende a homens mais velhos, sendo que por um deles ela desenvolve um apego maior. Com o falecimento deste em pleno ato sexual ela é descoberta e faz um tratamento psi para voltar a ser uma garota “normal”. Tudo parece caminhar para sua reabilitação, pois ela começa um namoro romântico com um rapaz da sua idade. A surpresa do filme é que ela simplesmente se desencanta disso que seria uma promessa de felicidade e retorna à prostituição. Quando ela reativa o antigo número de celular as mensagens dos clientes pululam uma atrás da outra para regozijo seu. A simplicidade dessa história parece testemunhar o que dizemos aqui: que o desejo feminino segue agora caminhos misteriosos e fora dos padrões estabelecidos.
A psicanálise lacaniana, seguindo as pegadas do desejo histérico, já havia descoberto que um dos traços fundamentais do desejo feminino é o de estar essencialmente ligado ao vazio. Isso permite que a mulher mude com mais facilidade que o homem o objeto de seu desejo, pois lhe interessa mais o vazio que o objeto venha ocultar ou o vazio que possa haver no objeto. É isso que, igualmente, explica o talento das mulheres para representação. É justamente pelo fato de seu próprio Ser estar atravessado pelo vazio, por se reconhecer no vazio, que a tarefa de encarnar qualquer personagem se torna tão acessível a uma mulher. Essa mudança no feminino, ou melhor, essa liberação, por sua vez, fez com os homens também se transformassem.

Um homem que ama
Mas quando nos interrogamos sobre o que seria essa transformação não nos vem à mente, justamente, a imagem do lenhador sexy, ou seja, um ideal encarnado por um Brad Pitt, um homem sedutor que arrebata toda e qualquer mulher, um “pegador”, um Don Juan? E para quem se destinaria o visual cuidadosamente desleixado se não para o desejo feminino? Além disso, essa concepção de homem parece ir ao encontro da queixa de muitas mulheres, a de que os homens hoje não se apegam, não se apaixonam, querem apenas desfrutar do sexo, evitar o amor, o compromisso, etc. Nesse mesmo sentido, poderíamos ainda convocar o ponto de vista de um sociólogo de peso, Zygmunt Bauman, que denunciou em Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos a superficialidade dos amores na vida contemporânea, a liquidez com que os amores se desfazem antes mesmo de começar.
 Contudo, nos tempos atuais, há um fato desconcertante que subsiste ao lado desse o homem fluido, livre e desapegado, a saber, com o declínio do modelo paterno,o homem passou a amar. Eis uma novidade! Sem a proteção das antigas identificações paternas, sem uma bússola para se orientar frente ao desejo feminino, ele se valeu do recurso ao amor. Ao fazer isso, no entanto, o homem adentra um terreno que ele não domina, ou melhor, um terreno dominado pelas mulheres. Inexperiente, se assim podemos dizer, o homem corre o risco de ficar em desvantagem nesse jogo há muito jogado por elas.
Uma posição desfavorável no amor já podia ser observada numa época muito antiga na qual o homem-pai ainda detinha o poder. Foi por volta do século XII, na Europa, onde alguns homens poderosos se lançaram a uma prática paradoxal para o seu tempo que ficou conhecida como amor cortês. Uma série de condutas foi relatada nos versos dos chamados trovadores. A Dama devia ser exaltada, com a correlativa desvalorização do homem devotado. Nos versos do amor cortês, a mulher torna-se um objeto supervalorizado, transcendente, inacessível, intocável. Ela não se caracteriza por ser virtuosa e amável com o homem que lhe “faz a corte”. Ao contrário, ela é extremamente arbitrária e impõe cruéis provas de amor àquele que se torna seu “servidor”. Encontramos, assim, o homem em uma posição de desvalorização e humilhação na relação amorosa. Posição paradoxal para uma época em que as mulheres não detinham nenhum poder econômico e social e o modelo patriarcal reinava. Essa Dama cruel e arbitrária, esvaziada de toda qualidade, encarnação do vazio, vazio que será contornando por uma série de procedimentos realizados pelo homem através de uma conduta de rodeio, serviu de referência para Lacan pensar sua noção de real sob a forma de a Coisa (das Ding). Essa mulher que encarna o real é para o homem, diz Lacan, “um objeto enlouquecedor, um parceiro desumano”.
O fato de que a mulher enlouquece um homem na relação amorosa pode ser considerado uma herança do amor cortês presente nas relações atuais. Levado à loucura, um homem pode perder as estribeiras e bater na mulher. Mas o fato mesmo de enlouquecer, transgredir a lei a ponto de ser levado preso, deve ser avaliado em relação ao despreparo desse homem atual frente ao desejo feminino. No filme de Lars Von Trier, Anticristo, encontramos um exemplo cheio de ironia de um homem que enlouquece na relação amorosa. Nesse longa, o marido terapeuta se dedica pleno de confiança e certeza ao tratamento de sua própria esposa. Ele a leva para uma fazenda isolada onde a natureza reina e ali aplica uma série de técnicas comportamentais de tratamento. Tudo fracassa. O especialista nos assuntos psi é o que menos sabia a respeito da psique de sua esposa. Ela surta, tenta matá-lo e ele tem que lutar pela própria vida para escapar. Enlouquecido pela loucura dessa mulher, ele a mata e queima seu corpo como o de uma bruxa. A ironia, portanto, é que o marido-terapeuta-salvador, se tornou o assassino de sua paciente-esposa. Por que motivo ele se dedicou de corpo e alma a esse tratamento? É simples: porque amava sua esposa. Anticristo coloca em evidência o fato de que a agressão masculina testemunha que o homem não controla mais a mulher. Esse descontrole evidencia também que amar para o homem é um modo de gozo, um gozo que pode ser mortífero.

À mulher nada falta
Nesse mesmo sentido, encontramos na teoria psicanalítica lacaniana uma formulação que inverte a clássica posição de superioridade do homem em relação à mulher, a posição de independência e poder do possuidor do falo e a correlativa dependência daquela a quem só restava a inveja do pênis. Hoje é comum o homem se apresentar como faltoso e a mulher, por seu lado, se apresentar como aquele ser a quem nada falta, ou que “não precisa de homem para nada”. Lacan percebeu que isso já estava inscrito em um nível básico da relação homem-mulher, o nível da relação sexual. Aí o homem está em evidente desvantagem pelo simples fato de precisar produzir e manter a ereção de seu órgão, o pênis. Assim, na hora “H” (que é a hora do Homem se colocar à prova) as coisas são tensas para ele: seu órgão pode não funcionar como esperado, a relação pode terminar antes do previsto ou simplesmente não acontecer. Por outro lado, mesmo que funcione bem, com ou sem ajuda de um “Viagra”, no final assiste-se inexoravelmente a uma detumescência, que simboliza a perda da sua virilidade. A mulher não. Neste nível ela sai do ato tal como entrou: intacta. Por não ter nada a sustentar, também não tem nada a perder. No nível do gozo não se pode falar em inveja do pênis na mulher, pois “não lhe falta nada” (Lacan). Ao contrário, “a mulher se revela superior no campo do gozo” (Lacan).
Não é novidade que a vida sexual do homem seja atravessada pelo drama da impotência. Na adolescência a experiência sexual ainda inédita é temida, o que explica o tempo enorme dedicado aos jogos de internet. Na maturidade há o temor de uma impotência inesperada e na velhice pode haver uma impotência há muito esperada. Nem precisaríamos falar da perturbadora questão do tamanho do seu pênis. Enfim, ao vincular sua virilidade à ereção de seu órgão, o homem se torna refém desta última. Não é o caso, por exemplo, das mulheres homossexuais que na relação sexual ocupam o lugar masculino, ativo, que faz a parceira gozar satisfatoriamente. O fato de não terem um pênis não lhes traz nenhum problema. Algumas, aliás, sentem-se muito mais viris justamente por não possuírem esse órgão tão frágil e problemático.
Pois bem, essa inferioridade masculina no campo do gozo é transposta ao campo do amor. Justamente por ter algo a perder, o homem se encontra em uma posição de desvantagem no amor. Poderíamos dizer que, quando um homem perde a sua mulher (ou até nos casos em que ele mesmo se separa dela), é como se uma parte de si mesmo lhe fosse cortada fora. Imagem que nos remete ao mito da costela de Adão com a qual Deus fez o objeto do desejo, Eva. Já a mulher, por já estar castrada de saída, por habitar o vazio, está muito mais preparada para a perda. Nenhum objeto é capaz de obturar sua relação íntima com o vazio. O sofrimento feminino está ligado mais às suas relações com o vazio. Via de regra, a solidão, por exemplo, é insuportável para a mulher. O homem, com seus apetrechos, seus canais por assinatura, lida melhor com a solidão. Seu mundo desaba apenas quando ele perde seu objeto privilegiado. Vale mencionar aqui a lembrança de um jovem que eu acabara de conhecer na mesa de um bar e que do nada soltou: não tem comparação, uma separação é muito mais difícil para nós homens do que para elas.
Nesse sentido, a clínica psicanalítica nos mostra homens surpreendidos e traumatizados com isso que para eles se apresenta como absolutamente inesperado: o fato de que em dado momento de crise, mesmo em relacionamentos já duradouros, a mulher amada se revele perfeitamente capaz de viver sem ele. É aí que encontramos no homem, só para dar um exemplo, o medo da separação. Medo que conduz às mais variadas formas de covardia, como, por exemplo, a de investir sua vida e seus bens em uma mulher que, ao menor deslize seu, teria todas as condições de lhe deixar.
Portanto, a superação do amor perdido passou a ser problema de homem. Talvez possamos afirmar, em resposta às mulheres que dizem que os homens não se envolvem, não querem compromisso, etc., que o motivo, pelo menos em alguns casos, é que eles não superaram um relacionamento traumático anterior, um amor que deu errado. Em seu inconsciente, portanto, eles amam, eles estão sob o efeito do que Freud chamou de fixação da libido, por isso, não estão livres para viver um novo amor, só lhes restando as diversões descompromissadas do sexo.

O luto e a alegria
O que se revela de nosso percurso é que o desafio do homem hoje é o de poder amar e, ao mesmo tempo, preservar sua virilidade. Se, como diz Jaques-Alain Miller, “só se ama verdadeiramente de uma posição feminina; amar feminiza”, como ser viril e feminino ao mesmo tempo? Ora, isso só é possível se o homem conseguir evitar fazer de uma mulher a solução para sua falta. Erroneamente, a experiência amorosa se tornou a via pela qual o homem acredita resolver o problema da sua falta. É preciso que ele se dê conta de que essa Mulher, assim concebida, não é nada além da parte de si mesmo (a costela) que está definitivamente perdida. O objeto está perdido. É preciso, pois, fazer o luto dessa perda. Como diz Lacan, “o homem tem que fazer o luto de encontrar em sua parceira sua própria falta”. O luto é um processo dolorido, triste, mas que leva a um paulatino desapego. É isso que lhe permitirá que o objeto amado não se torne insubstituível, e ele se aposse da certeza de que a alegria de um novo encontro amoroso estará sempre em seu horizonte.

Cristiano Pimenta

quarta-feira, 23 de julho de 2014

SOBRE O AMOR E A TRAIÇÃO (por Cristiano Pimenta)




“Eu só me apaixonei verdadeiramente por uma única pessoa, foi no ano passado... Rompemos. Doeu e ainda dói, não pela pessoa em si, mas pelo ideal que eu construí dela... Sabe aquela sensação de que ‘Nossa, eu encontrei o que queria!’? Pois bem, a realidade não alcançou as minhas expectativas, não por culpa dele, coitado, ele não tem culpa, ninguém nasceu para suprir as expectativas dos outros...”

A autora do trecho que acabamos de ler é uma jovem mulher que expressa sua dolorosa verdade: ela constata que o relacionamento no qual ela projetou seu desejo de amor mais profundo, aquele que a levou a dizer para si mesma “Nossa, eu encontrei o que queria!” – naufragou nas águas traiçoeiras do engano. É provável que ela, a autora, tenha saído emocionalmente prejudicada dessa experiência, já que afirma também que se vê “receosa e com medo de me machucar novamente”.

Mas quem não fracassou no amor? O que ela diz poderia ter sido dito por qualquer um de nós em determinado momento de nossas vidas. Se o assunto diz respeito a todos nós, ele merece alguns comentários.

Gostaria de partir da ideia de que o amor, no sentido de uma relação amorosa, realiza sempre um pacto (explícito ou implícito) entre duas pessoas. Não há amor sem pacto. Isso significa que uma simples relação sexual por si só, não faz um pacto de amor. É preciso que haja, de maneira velada ou expressa, uma frase do tipo: De agora em diante, você será minha mulher. Essa é uma frase típica que funda, por ex., um casamento. Mas qual seria a frase que funda uma relação amorosa? A mais simples de todas: eu te amo.

E o que é amar? Na melhor definição que conheço, a definição lacaniana, amar é dar o que não se tem. Eu amo alguém quando faço um ato que sacrifica algo do meu ser, algo que dou ao outro mas que, de fato, eu não tinha condições de dar. Alguns exemplos: se sou pobre e dou à pessoa amada um presente caro, ela sentirá que a coisa é séria; se sou rico e não pretendo comprá-la com o dinheiro que tenho em excesso, ela ficará intrigada e poderá se perguntar: o que esse homem rico viu em mim? Se o homem for regularmente infiel, um “pegador”, mas por tal mulher ele sacrificar seu gozo, algo importante existe com essa mulher.

Enfim, amar supõe uma atitude: a de dar o que quer que seja, contando que não se tenha isso que é dado. Quando se dá o que se tem o ato não funciona como uma verdadeira prova de amor. Se sou rico e te dou algo que meu dinheiro pode facilmente comprar, isso não te dará a certeza de meu amor. Uma mulher poderá se sentir mais amada se, nesse caso, receber flores.

Se dizer “eu te amo” funda o pacto de amor, e se amar é dar o que não se tem, consequentemente não se diz “eu te amo” impunemente! Dizer “eu te amo” é um comprometimento que funda todo um campo de possibilidades, pois é um pacto em dar o que não se tem para dar. Não é preciso ser muito experto para saber que deve-se ter muita prudência com essa pequena frase eu te amo, pois as consequências ao dizê-la podem ser, em certos casos, devastadoras.

Uma vez feito o pacto de amor entra em cena o tema da fidelidade e da traição. Ou seja, a questão passa a ser sempre se iremos trair ou não o pacto feito; ou se, por outro lado, seremos traídos. A traição, nesse sentido que aqui a descrevo, é sempre a sombra negra que perscruta o amor, é sua ameaça velada, mas sempre presente. Mas trair, no sentido que aqui considero, não é simplesmente “ficar” com outra pessoa, é muito mais que isso, é qualquer coisa que faço que me leva a não realizar o pacto de amor, ou seja, a não dar, na ocasião em que sou convocado, o que eu não tenho.

Assim, se a possibilidade de trair está presente quando estou amando, nos vemos confrontados também com uma questão propriamente ética, a ética do desejo: eu desejo sustentar o meu amor? Eu desejo não trair o pacto de amor que fiz? Se a resposta é sim, então, ao trair a pessoa que amo (não dando a ela o que não tenho) eu traio, na verdade, a mim mesmo. Como diz Lacan, eu cedo de meu desejo. A questão ética presente no amor, portanto, é a de ceder (ou não) de seu desejo.
Mas, e se não fui eu quem traiu o pacto de amor, mas sim meu parceiro ou minha parceira? A resposta pode ser extraída de uma passagem de um Seminário de Lacan sobre a ética da psicanálise, no momento em que ele aborda a ética do desejo:

“O que chamo ceder de seu desejo acompanha-se sempre no destino do sujeito de alguma traição. Ou o sujeito trai sua própria via, se trai a si mesmo, ou mais simplesmente, tolera que alguém (com quem ele se dedicou a alguma coisa) tenha traído sua expectativa, não tenha feito com respeito a ele o que o pacto comportava, qualquer que seja o pacto, fausto ou nefasto, precário, de pouco alcance, ou até mesmo de revolta, ou mesmo de fuga, pouco importa. Algo se desenrola em torno da traição quando se a tolera, quando, impelido pela ideia do bem – quero dizer, do bem do traidor – se cede a ponto de diminuir suas próprias pretensões, e dizer-se – pois bem, já que é assim, renunciemos à nossa perspectiva, entremos na via costumeira. Aqui, vocês podem estar certos de que se reencontra a estrutura que se chama ceder de seu desejo”.

Ora, essa passagem do texto lacaniano parece ter sido feita sob medida para a autora do breve texto que nos propusemos a comentar. Em ambos encontramos a mesma palavra chave: expectativa.

A autora diz que “a realidade não alcançou minhas expectativas”, ou seja, a pessoa real não correspondeu ao que ela esperou dele. Se supusermos que em algum momento eles fizeram o pacto de amor, de forma implícita ou explícita, então teremos que concluir que ela foi traída. Pois, se houve o pacto, houve a geração das expectativas e a traição é, fundamentalmente, uma traição da expectativa gerada.

Mas a jovem mulher não quer ver aí uma traição de seu parceiro. Ela quer poupá-lo de toda culpa (ele não tem culpa, diz ela), ou seja, ela quer o seu bem. Afinal, sempre tendemos a querer o bem daquele a quem consideramos um “coitado”. Por isso mesmo, ela assume uma posição que visa desresponsabiliza-lo de algo em que ele participou efetivamente: a produção da expectativa dela, por mais ilusória que essa seja.

Em outras palavras, ela quer excluí-lo do pacto de amor e assumir sozinha toda a responsabilidade. Ela constata que, de fato, ele não tinha para dar aquilo que ela buscava nele, o que quer que seja: um casamento, um filho, ou mais dedicação ao relacionamento, pouco importa. Todavia, ela não vê que era nesse exato ponto que ele poderia tê-la amado, ou seja, dando a ela exatamente o que ele não tem para dar.

Assim, ao salvar seu parceiro de toda culpa, ela cede de seu desejo, ela trai a sua via, se trai a si mesma, já que ela tolera a traição daquele com quem firmou um pacto. Dessa vez é ela que não faz o que eticamente foi convocada a fazer: ela não rompe (no nível emocional) o pacto, ela continua dando o que não tem, ela continua amando. É por isso que não encontramos no trecho citado nada que se pareça com uma fúria. Na verdade, ela poupa seu parceiro dela mesma, da fúria tipicamente feminina que naturalmente a tomaria por suas expectativas mais íntimas terem sido frustradas. Isso que ela faz, vale dizer, é aquilo que todos nós fazemos ou já fizemos quando amamos.

E qual é o preço que comumente pagamos nessas situações? É o de deixar a nossa vida amorosa paralisada numa espécie de zona neutra, justamente aquela em que se teme ter expectativas no amor. Por detrás desse temor, na verdade, há uma voz superegóica a nos martelar a mente: Viu no que deu essa história de querer ser feliz? Você foi ter expectativas no amor e se ferrou!! Portanto, entre na via costumeira, evite o amor, será melhor para você!

Para terminar, eu diria que os verdadeiros homens sabem tolerar a fúria de uma mulher quando ele não correspondeu às expectativas que ele mesmo gerou nela. Ele sabe que tem responsabilidade nisso e que, portanto, ela tem suas razões para estar furiosa. Assim, se, por motivos quaisquer, justos ou injustos, ele vier a seguir seu caminho deixando a mulher que o ama, ele jamais poderá se eximir da responsabilidade por essa escolha.

O mal maior não está em trair um pacto. Aliás, não há nada pior do que sustentar um pacto de amor por mera obrigação. O mal está em trair seu próprio desejo. A responsabilidade com o próprio desejo deve ser, no meu entendimento, a maior de todas.

Cristiano Pimenta


quarta-feira, 16 de julho de 2014

O DESEJO NO MUNDO DOS ADULTOS (por Cristiano Pimenta)




Se há uma coisa facilmente perceptível na maioria das crianças é a imediatez, a urgência, do desejo. Se dissermos a uma criança que hoje iremos fazer uma coisa que ela gosta muito (ir a um parque ou à casa de um amiguinho querido), a reação dela certamente será: Vamos agora! Por isso, é uma crueldade nossa dizer que o presente que ela acaba de ganhar só poderá ser aberto amanhã.

Nós adultos tendemos a perder essa espontaneidade do desejo. Somos mestres do adiamento, das interpolações, de colocar obstáculos ao desejo. E isso é em nós uma doença ruim. O neurótico obsessivo é o mestre maior da procrastinação ao ponto de fazer da realização do desejo um impossível. Ele sabe colocar o desejo em compartimentos bem organizados espacial e temporalmente. O sujeito histérico tem o seu modo peculiar de desejar: que o desejo permaneça sempre na insatisfação! Uma histérica decidida saberá deixar seu parceiro enlouquecido de desejo por ela, mas saberá também sumir da cena quando chegar a hora exata dos “finalmentes”. Ela saberá, igualmente, preencher seus dias com tarefas absolutamente importantes e necessárias, de modo que não reste quase nenhum tempo a ser dedicado ao seu parceiro amoroso. Assim, nas relações amorosas ambos serão, sabotadores do desejo. Cada um a seu modo estará sempre dizendo: “Hoje não, deixemos para depois, para amanhã, depois de amanhã será melhor ainda, semana que vem...”.

É aí que as razões, os motivos para esses adiamentos serão valorizados ao extremo: “Eu não pude vir ao nosso encontro porque tinha uma coisa muito importante para fazer”. Ou seja, trata-se aqui de um mecanismo inconsciente de desvalorização do desejo: outra coisa sempre será mais importante que a realização do meu próprio desejo. Temos aqui o contrário, portanto, do funcionamento do desejo na criança, que é sempre fundado na urgência.

E se um de nós adultos (sim, pois as crianças sadias não precisam disso) fizer uma análise e recuperar sua capacidade de dar prioridade ao desejo terá, então, que enfrentar as tentativas de sabotagem dos demais adultos. Uma delas se manifesta assim: “Se você quer realizar urgentemente seu desejo eu te desvalorizo”. É preciso, portanto, fazer de conta que não estou desejando, que não estou nem aí para o outro, assim ele poderá me valorizar. Portanto, se você apresentar seu desejo tal como ele realmente é, a saber, em estado de urgência, você vai se dar mal no mundo dos adultos. Se você fosse uma criança seria tolerado porque no fundo não seria levado a sério.

Isso, é claro, tem uma explicação: a realização do desejo para um adulto não analisado ou que não preservou em si a criança que ele foi, é algo profundamente angustiante. A realização do desejo sempre lhe aparece como sendo da ordem de um delito que o fará sentir-se culpado. E é incrível que esse mecanismo ainda subsista na época em que vivemos, a época em que o gozo é não apenas liberado, mas obrigatório.

Era natal. Família reunida. Eu havia comprado presentes para os meus sobrinhos. Um deles me era, e ainda é, muito querido e por isso mesmo eu havia lhe dito, mais cedo, que comprara um presente especial. Ou seja, eu já o havia colocado à espera de um objeto misterioso do desejo. Chegada a hora de entregar os presentes eu fiz uma coisa da qual hoje não me orgulho de modo algum: eu o deixei por último, fui dando os presentes para todos os outros sobrinhos. E fiz isso com um toque a mais de crueldade: a cada vez que eu pegava um presente eu o olhava como se esse fosse o dele, mas o dele foi o último. Crueldade de adulto a minha. Dessas que fazemos sem perceber que fazemos. Ele ficou feliz quando finalmente recebeu e abriu o pacote. Eu, todavia, senti um certo incômodo que só hoje interpreto de uma forma que convence a mim mesmo: eu coloquei em prática isso que eu denuncio no texto acima, um espécie sadismo com o adiamento do desejo. Mas vale relatar aqui algo que eu observei no comportamento dele durante o tempo em que ele esperava. No fundo - hoje isso me é muito claro - ele não esperava. Ele arranjava outra coisa para fazer, outro brinquedo, convocava um primo para um jogo qualquer. Eu é que o interrompia com a promessa que seria o momento de receber o presente tão falado. Hoje, com muita dificuldade, estabeleço esse comportamento dele como uma referência para mim. Não gosto, não posso, não devo, simplesmente ficar esperando pela realização dos meus desejos. Isso é algo muito difícil para um adulto. O adulto tende a ser fixado em um único objeto, o qual assume o caráter de ser insubstituível. A criança não. Basta lhe dizer “Vamos brincar de outra coisa?” que ela tenderá a dizer sim com um sorriso no rosto. O adulto, na maioria das vezes, só sabe brincar da mesma coisa e quase sempre, sem um sorriso no rosto.


Cristiano Pimenta

segunda-feira, 21 de abril de 2014

O impronunciável do corpo na experiência analítica


por Cristiano Pimenta

Um dos traços relevantes que podemos observar na clínica hoje é que muitos analisandos se defrontam –já no momento em que a análise se inicia ou em momento posterior– com um real que não cede aos efeitos de significação. Ou seja, esse confronto não está confinado ao final de análise. E o que prevalece nesses momentos é a existência de uma inércia que mantém o falasser apartado daquilo que constitui o fundamento mesmo do laço com o analista, a saber, o efeito de sujeito-suposto-saber. Assim, o tratamento, pelo menos durante certo período, não se assenta na associação livre e em seus efeitos de significação. O analista se vê, pois, desconcertado diante da impossibilidade de produzir, por exemplo, uma entrada em análise nos moldes clássicos, se vê igualmente embaraçado pela ausência da dialética significante, com toda a mobilidade de suas posições, que acarreta o que Miller realçou com o termo lacaniano "varidade" [1]. Poderíamos ir ao extremo de dizer que assistimos a uma espécie de suspensão do discurso, posto que todo discurso reserva um lugar para os efeitos de verdade. Sendo assim, uma pergunta se faz pertinente: dado que não há a instalação do sujeito suposto saber, ou que ocorre uma espécie de suspensão temporária do mesmo, o que leva alguém submetido a tal inércia a retornar ao analista? Sim, pois impressiona o fato de certos pacientes perseverarem assiduamente durante esse hiato temporal que suspende todo e qualquer enigma.
E o que há aí nesse espaço de inércia? Há –eis como lemos a questão– aquilo que Miller desenvolveu em seu Seminário O ser e o Um [2], a saber, "o gozo do Um sozinho, ou seja, o gozo que coloca em primeiro plano os acontecimentos do corpo": angústia, depressão, enlouquecimento, aflições que parecem atingir um ponto além do suportável.
Em outros termos, nesse hiato temporal em que o simbólico sucumbe o que emerge é o impronunciável do corpo. E como tratá-lo senão por vias que lhe são afins? Ou seja, nesse nível mais além, ou mais aquém, da articulação significante uma análise deve ser "o tratamento do real pelo real" [3], para usar uma expressão citada por Rômulo Ferreira da Silva no X Congresso de Membros EBP. Assim, as intervenções do analista são peças soltas, funcionam como Um sozinho, sendo afins, portanto, com a estrutura mesma do sinthoma. Eis o que permite ao falasser retornar à sessão: só ali o impronunciável de seu corpo pode ser ouvido. O analista é o único que, sabendo da ineficácia dos efeitos de significação para o tratamento do real, não cede à oferta pseudo-apaziguadora do discurso da ciência e do discurso capitalista, que se conjugam, por exemplo, na indústria dos medicamentos. O analista é o único que propõe um saber fazer com o corpo, para que o falasser possa realizar uma nova aliança com ele [4]. O tratamento do real pelo real supõe, igualmente, uma outra forma de se pensar o vínculo paciente-analista, mais além do vínculo transferencial. Trata-se antes de uma amarração pela via do nó borromeano, que preserva a separação, o caráter de Um sozinho, daquilo mesmo que se amarra, e por isso não produz efeitos de sentido, não produz nenhuma verdade.

Miller, J.-A., Perspectivas do Seminário 23 de Lacan, o sinthoma, Rio de Janeiro: Zahar 2009, p. 26.
Miller, J.-A., L'Etre et l'Un (2011-2012), aula 8, inédito.
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*Texto publicado na http://www.enapol.com